Clemente era o seu nome e clemência era o que ela pedia naqueles dias em que os dias pareciam menos apressados. Clemente olhou nos meus olhos e chorou o mundo inteiro pela morte de Alma. E quis saber o que vem depois.
Eu era estudante de filosofia e só sei que chorei também. E abracei Clemente. As palavras demoraram a ganhar dizer. Antes do dizer, foi preciso sofrer junto.
Clemente era um morador das ruas da cidade onde nasci. E Alma, uma cachorra que se fazia linda nos olhos de Clemente. Eram inseparáveis. Era bonito de ver os dois dormindo juntos. Os dois comendo juntos. Os dois trocando olhares.
Meu pai era um homem cioso de que a bondade deveria ser feita, principalmente, aos mais próximos. Se cada um cuidar do seu quintal, o mundo de todo mundo fica mais florido, era no que ele acreditava, era o que ele praticava. Até casa para Clemente ele providenciou. Mas Clemente ia e voltava. E lá estava ele, novamente, nas calçadas.
Se a mente de Clemente se dispersava em ora compreender, ora não compreender, uma coisa não faltava, o amor por Alma. Lembro-me de conseguir veterinário para ela, mais de uma vez. De ver Clemente deitado em frente à clínica esperando por Alma. E, agora, Alma morreu. E Clemente quer saber para onde vai quem morre. Para onde vai a Alma? A pergunta sai simples como simples é a confiança dos que confiam. Ele confiava a mim aquela resposta. A mim, estudante de filosofia. A mim, filho de um homem bom.
Os dias sem Alma não seriam os mesmos. E a alma de Clemente? E a minha alma? E a alma de toda gente? Ninguém vê a alma. Ela vai além do físico. Ela não se vê pelos olhos, não se escuta pelos ouvidos, não se toca pelas mãos, não se prova pela boca, não se sente pelo respirar. Ou se sente, talvez. Ou, talvez, se veja, se escute, se prove, quando a prova que vale são as mãos que abraçam o abraço necessário quando o choro vem. A alma prossegue. Sentir a alma ajuda o prosseguir e o acreditar. Desacredito dos que desacreditam. Desacreditam porque não veem a alma.
Eu via a Alma de Clemente e a sua alegria apenas por ela existir. Saber da existência da alma muda a existência das gentes. Amplia. Preenche de florescimentos uma vida. Entre choros, disse Clemente, “Se Deus existe, a Alma não morreu”. Concordei com ele, “Se Deus existe, a alma não morre, as almas não morrem”.
A lembrança de Clemente é uma das tantas que aquecem minha alma. E, tanto tempo depois, a minha crença prossegue. Almas não morrem. Nem a de Clemente nem a de ninguém. Almas desabrocham vida no que vai além do físico. O sentimento vai além do físico. O sentimento é filho da alma. Da que conhecemos tão pouco. Porque nos satisfazemos com o pouco que o físico nos oferece.
Clemente também já vive no mistério. Sem as dores e as misérias do físico. Sem as dores que causam os que de alma pouco sabem.
Enquanto escrevo, Serena, da mesma espécie irracional de Alma, olha para mim. Um olhar de bondade. A bondade é a prova mais bonita da existência da alma, da existência de Deus.